Um dia, há muito tempo atrás, tive um filho de santo com 16 anos. Toda a sua família fazia parte do meu Ilê e já havia muito tempo sua mãe insistia que ele gostaria de fazer parte do culto e eu sempre respondia que era cedo. Consultei os Búzios e realmente Oxalá pedia obrigação e assim ele teve sua cabeça lavada com Mieró e passou a ser meu Iaô. E logo após fazer parte da casa ele me perguntou:
- Pai, por que as pessoas dizem que Bará é do mal?
Abriu-se um rasgão no tempo e eu entrei por ele. Recordei de todas as vezes em minha infância e adolescência em que a minha fé me criou problemas de ordem social. Aquele filho novinho em idade e no culto podia estar passando agora por problemas que eu já tinha passado e eu precisava ajuda-lo de alguma forma, mostrando a ele que a nossa fé nos fortalecia, nos tornava atores principais de nossas vidas e não coadjuvantes. Foram um milhão de pensamentos em uma fração de segundos, eu precisava costurar fragmentos e sentimentos e entregar para ele confiança e argumentos que jamais lhe deixassem inseguro.
- Filho você sabe o que é caos?
- Não, Pai. Mas é ruim?
Voltei aos meus pensamentos...
Nos dias atuais e com a raiz cultural tão cristã que vivemos, com evangélicos loucos nos demonizando e agora até mesmo padres que pareciam ser mais imparciais, ter como responsabilidade explicar a nossa filosofia e os nossos Orixás para um adolescente de uma forma racional, lógica, mas sem perder a poesia e a magia era um grande desafio. Mas mesmo sendo muito difícil, aquele era o momento de dar argumentos para que ele se sentisse abençoado e empoderado por fazer parte de alguma forma desse universo Africano.
Antes de vir com toda aquela história já conhecida por nós de Bará (Exú, no Candomblé) versus Diabo, eu resolvi fazer diferente. Eu respirei o mais fundo que pude e deixei meu Ori me levar por um conto que nunca foi contado, mas que nasceu ali naquele momento de forma espontânea. Até porque acima de tudo estávamos falando do meu orixá, do dono da minha vida...
Continuei...
Numa época há muitos e muitos anos havia um devoto de Bará chamado Baráemy. Emy andava inquieto consigo, sentia-se perdido, sua vida estava muito parada e ele queria dar mais movimento à ela, estava insatisfeito com o rumo que a sua vida tomava. Ele resolveu visitar um amigo que morava do outro lado do deserto. Esse amigo havia acabado de abrir um pequeno negócio de vendas e ele queria ver como estavam as coisas, para talvez tentar o mesmo em sua cidade.
Antes de viajar Emy procurou Bará e contou a ele sobre a viagem. Bará lhe disse que como ele já sabia, tudo na vida era uma troca, que para cuidar dele durante a viagem que duraria dias e garantir que chegasse bem até o outro lado do deserto, ele deveria fazer uma oferenda, e que assim ele iria garantir que estaria com ele durante todo o percurso. Emy fez a oferenda. Bará lhe aconselhou a se organizar bem na viagem e levar o que era necessário.
No dia seguinte, antes mesmo do sol beijar o nosso horizonte, Emy pegou sua sacola com água e algumas roupas, mas deixou o mapa para trás, pois sabia que era um reta só e já tinha feito aquele caminho algumas vezes. Emy mirou o horizonte e disse para si mesmo: Só preciso ir reto que em dois dias de caminhada eu logo chego.
Ele foi.
Bará foi com ele.
Partiu cantando:
Bará me acompanha onde eu vou
Bará está no meu caminho
Lalú me apoia
Oxalá me abençoa
Nas primeiras horas de caminhada ele já estava cansado. Bará apenas observava o seu devoto, mas esperava com paciência o momento em que ele se lembraria de tudo que Bará o ensinou ao longo dos anos, perante a sua devoção. Mas a irritação e a impaciência dominavam Emy e ele já não pensava direito.
Em 24 horas de viagem, com direito a uma pausa para descanso, Emy percebeu que já tinha bebido quase toda a sua água. Bará o observava, sabia que Emy não tinha se organizado como ele o aconselhou. Mais seis horas se passaram e a água acabou. De repente Emy ficou frente à frente dos seus próprios passos na areia, foi aí que ele percebeu que estava andando em círculos.
Bará OOOOOO!
Bará eu te saúdo!
Bará, eu te chamo!
Bará, eu te chamo!
Bará, eu te chamo!
Meus respeitos, Bàbá mi! Por favor me ajude, estou com sede e ainda longe do meu destino e perdido.
Nada aconteceu.
- Onde está você? - Emy clamava por Bará.
- Preciso da sua ajuda! - Ele insistia.
O silêncio do deserto era absoluto.
Emy ficou irritado e ainda mais impaciente, começou a gritar e esbravejar no deserto que Bará o tinha abandonado. Que o Orixá Bará o tinha esquecido.
Enquanto isso, Bará apenas observava.
Emy arriscou continuar caminhando em uma direção, pois se desistisse morreria ali mesmo, mas a direção escolhida não era a certa. Foi aí que Bará correu como uma flecha na frente de seu devoto. Bará escolheu um local e começou a cavar um buraco na areia. Ele cavou, cavou, cavou e cavou. De dentro da sua sacola tirou três objetos e os jogou dentro do buraco.
Quando o devoto de Bará ia passando perto do buraco, Elegbará pediu que um pássaro cantasse no céu e foi o que chamou a atenção de Emy, fazendo-o olhar para cima, com mais dois passos, ele caiu dentro de um buraco com mais de 4 metros de profundidade.
Pausa dramática!!!
- Pai, Bará fez Emy cair dentro do buraco de propósito? (Ele me perguntou num tom de indignação.)
- Sim. (Eu respondi segurando a risada.)
Ele ficou me olhando desconfiado e eu voltei para a narrativa.
Emy caiu no buraco e continuou com os olhos fechados. Ele chorou. Com as mãos sobre o rosto, ele se sentia abandonado e agora traído por Bará. Ele agora estava no meio do deserto, perdido, cansado, com muita sede, desidratado, caído dentro de um buraco e sem ter como sair... e o pior de tudo, Bará tinha mentido para ele.
Sentado na beira do buraco, Bará balançava as pernas e observava. Emy era devoto há tantos anos e ainda não sabia como agia Bará. Emy só via a sua desgraça, só conseguia sentir pena de si mesmo. Horas se passaram e ainda com os olhos fechados, ele lembrou da recomendação do Bará: " SE ORGANIZE".
- BURRO! Ele gritou. Quase sem força na voz de tanta fraqueza.
Bará então conversou silenciosamente com o Orí de Emy, pedindo para que ele parasse de ter pena de si mesmo e abrisse os olhos. Orí escutou Bará, Orí também queria sair dalí. No mesmo instante ele abriu os olhos, limpou a areia de seu rosto e viu água, uma corda e um mapa e gritou:
Alupôoooooooooooooo!!!
Emy, o teimoso, impaciente e desorganizado, agora tinha aprendido a lição.
Com a água matou sua sede, com a corda ele laçou a árvore seca que estava à beira do buraco e com o mapa ele seguiu na direção correta.
Meu filho ficou olhando para o nada, enquanto eu observava o semblante dele. Esperei ele dizer algo.
- Pai, é assim que o Bará age em nossa vida?
- Sim.
- As pessoas acham que ele fazer Emy cair no buraco faz dele mau?
- Sim.
- Mas Pai, por que ele simplesmente não deixou a corda, a água e o mapa no meio do caminho, ao invés de fazer ele cair no buraco?
- Porque Emy precisava se fortalecer. Nós só nos fortalecemos quando chegamos no nosso limite e é através das lições da vida que nos tornamos mais fortes. ( E eu fui em frente) Agora me diga o que é o caos?
- É o buraco?
- Simmmm! (Eu disse com um sorriso largo no rosto cheio de orgulho por ter me feito entender) – E o caos é bom ou ruim?
- Ele é bom, mesmo que na hora a gente não entenda.
- Bará é bom ou ruim?
- Depende de como entendemos o que é bom ou mau.
- Tu entendeu?
- Sim Pai, mas eu ainda tenho mais uma pergunta.
- Pode fazer filho.
- Bará deixaria Emy sem ajuda?
- Claro que não! Bará tem uma palavra só. Mas ele espera que façamos a nossa parte e tenhamos o comportamento que ele nos ensina. Temos que confiar naquilo que acreditamos, pois de qualquer outra forma, não é fé.
Somos seguidores dos Orixás. Somos por excelência protagonistas de nossas vidas, e quem está no comando somos nós.
Dedico este texto a minha primeira Yalorixá Mãe Vanda d'Bará Lanã que há 35 anos me iniciou no Africanismo.
o ṣeun pupọ iya mi. Emi yoo ko gbagbe ohun ti Mo kọ ati lailai mu orukọ rẹ
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