Apagou todas as luzes, sentou-se no terraço em uma pequena cadeira de praia e começou a contar as estrelas sem usar os dedos, para não correr o risco de ganhar uma verruga. Enquanto o vento trazia o cheiro forte de chuva e fazia as folhas das arvores da casa da vizinha da frente sacudirem, em uma dança frenética sem compasso. O vento parou de repente e com ele o tempo cessou. Foram apenas centésimos de segundos, para que um grito fino, longo e agudo invadisse a paz do momento em meio as estrelas que ele tentava contar...
O conhecimento africano é cheio de labirintos, muitos deles bifurcados que não levam a lugar nenhum e a todos os lugares ao mesmo tempo, às vezes como se fosse um jogo de tabuleiro, daqueles que se você tirar a carta errada, ela pode te fazer voltar ao início.
O que vou escrever hoje não está escrito em lugar nenhum (acredito eu), é baseado em conclusões pessoais sobre um sistema religioso rico, profundo e perigoso para os que possuem vaidade, cegueira e ego inflado. Portanto convido a ti, que está lendo este texto, a apenas pensar nesta possibilidade, e não de acatá-la como verdade. Apenas pensa...
Vou começar com uma lenda já divulgada por muitos aqui na internet.
De forma bem resumida, em uma das lendas da criação do homem em Àiyé , conta-se que quando as Mães (Ìyámi) vieram ao mundo (há versões diferentes deste mito) e encontraram os seres humanos manipulando uns aos outros, acreditando antes de investigar, pagando o bem com o mal, traindo seus próprios amigos, matando os seus semelhantes e até seus próprios pais e filhos, sendo ingratos com os que lhe deram um prato de comida e lhes serviram quando mais precisaram ou usando a gratidão para escravizar, enganando aos que tinham bom coração e boa fé, vendo a vaidade e orgulho vencer o amor em busca do poder, ao invés de simplesmente pagar roubando os que lhe deram abrigo, brigando por uma verdade que não existe, mentindo para os seus próprios filhos, estuprando crianças, desvalorizando a terra que os alimentava... Elas ficaram encolerizadas e voltaram para o Orun. Elas então voltaram para onde Olodumare vivia, e disseram que para Aiyê elas não voltariam, pois elas viam que a criação de Olorun, os seres humanos, que também eram seus filhos, eram ingratos e estavam condenando uns aos outros ao próprio sofrimento através de suas ações. Olodumare, pediu à elas que voltassem, e deu as Iyami a missão de equilibrar o Àiyé. Naquele momento as Grandes Mães criaram os ajoguns.
Os Ajoguns são todas as formas do SOFRIMENTO humano:
A maldição
A desgraça
A perda
A doença
A morte prematura
A dor
A tragédia
As pragas
De todas as dores de uma Mãe, a pior dor é a dede precisar punir os seus próprios filhos e a de vê-los sendo punidos. Escrevo isso como filho que sou. Não há outro caminho para a cura senão pela dor. Ninguém aprende nada através da felicidade. Tu já parou para pensar nisso?
O mundo é circular e linear, realidades que se contrapõem e se equilibram num movimento perfeito de ação e reação, de causa e consequência. Todos os dias cometemos erros e acertos, que são exatamente as nossas ações que gerarão reações. Essas reações não necessariamente chegam amanhã, ou depois… na verdade não se sabe quando elas chegarão. Cada ação é como uma semente, cada uma no seu tempo. E aos bondosos de plantão compreendam que a regra do Universo é clara: Uma boa ação, não anula uma errada. Então não adianta depois de viver anos em uma banheira de sangue, querer fazer a virgem que luta pela causa animal...
Seria ótimo, sim seria… se apenas nós mesmos pagássemos pelos nossos erros e por nossas escolhas. Assim seria fácil, mas não é assim que funciona.
Em alguns ditados africanos, tanto de Bará e de Iyami, há um desfecho que chama atenção para a dinâmica de aiye, veja:
Bará/Iyami ma se mi omo elomiran ni o se
Tradução:
Bará/Iyami não me faça mal. Faça mal ao filho do outro.
*Os ajoguns estão nas mãos de Esu e Iyami.Muito pior do que viver a dor, é ver a dor em nossos filhos e das pessoas que amamos. (Obviamente essa dor não atinge os psicopatas que não conseguem amar ninguém além deles mesmos, pois ser um deles já é a sua própria dor, e nem mesmo os pretenciosos que escutam uma única versão de qualquer história e sem buscar a verdade, conforme sua conveniência a transformam em lei). A nossa dor conseguimos carregar e muitas vezes suportar. Mas é na dor de um filho que nos sentimos incapazes, inúteis, perdidos e incompetentes.
Quando cometemos erros que encolerizam as grandes mães, ações que desequilibram o Universo, não estamos apenas trazendo as consequências para nós e sim para os nossos ascendentes e descendentes.
É muito, muito comum em minhas consultas com o jogo de búzios, me deparar com problemas de ordem de saúde, espiritual, material e emocional, que não foram geradas pela pessoa que está ali na minha frente consultando, e sim pelos seus filhos, pais, pelos avós… e assim por diante. Pessoas muitas vezes desorientadas que não compreendem a origem de suas dores, que não compreendem onde erraram e nem ao menos que erro cometeram. Dependendo da gravidade da ação de origem, as consequências se arrastam de geração em geração, dilacerando famílias inteiras.
Não conheci ainda dentro do Culto Africano (Onde se encontram em perfeita sincronia: Bará, Orunmila/Ifá, Iyami, Oxun, Xango, Oyá, Ogun, Obatalá, Olokun, Otim, Odé, Yemanja, Ibegi, Ossãin, Xapanã e todos os Orixas) um problema que não tivesse uma resposta trazida com lógica e sabedoria.
Assim vão se unindo peças desse jogo chamado viver, alguma chaves de compreensão sobre a vida abrem caminhos em nosso Ori para honrar a nossa existência, e vamos aprendendo que:
- Quase todo sofrimento humano tem origem em ações do próprio ser humano e somos nós que causamos o desequilíbrio no àiyé.
- A lei do retorno atinge a nossa descendência
- Os problemas que temos hoje, podem ser a colheita de uma ação/atitude de muitos anos atrás
- As reações de nossas atitudes, não têm prazo nem data para acontecerem.
Ọ̀nà’ re o - (Um bom caminho para você)