Quando numa sexta-feira, 25 de dezembro, um dragão rasgou a noite, bufando poeira de estrelas pelas narinas, reconheci a amazona que o cavalgava: era a Esquelética de quem os escritores, em seu doloroso romantismo, tanto falaram e ilustraram na ponta dos dedos.
Eram vinte e duas e cinquenta e cinco da noite! O relógio não se enganara. Exatamente quando os ponteiros marcavam vinte e duas e cinquenta e cinco da noite a velha senhora se apresentava, livre de qualquer atraso, de qualquer desculpa esfarrapada. Exata como uma equação matemática, pousou o dragão sobre o leito de hospital que Ramão, meu Babalorixá, se encontrava. Não se confundiu com nomes nem solicitou à nenhuma enfermeira, informações sobre o leito.
Embora insatisfeito com o local do encontro e, se lhe fosse dada escolha, preferisse o meio de algum salão de batuque ou de festa, acatou a chegada, lembrando-se de uma canção que alguém compôs num momento de inspiração metafísica onde afirmou a realeza solitária da Esquelética. "Afinal, se a morte é rainha que reina sozinha, quem sou eu para reclamar do local do encontro", perguntou-se, cantarolando a canção enquanto a digníssima dama se aproximava.
Demonstrando sinais de agenda sobrecarregada por horários que desafiariam a mais requintada teoria quântico-filosófica, indiferente a dor, ao espanto e às súplicas dos doentes que por ela esperavam como se esperassem uma aplicação de morfina, a Esquelética rainha se aproximou de Ramão Luiz, o Caco, pronta para lhe dar o mortífero beijo...
E foi nesse exato instante que os seus lábios descarnados se aguavam em gotas secas do Rio da Secura que deu-se o inesperado: dragões alados, cavalgados por Babalorixás, heróis, filósofos, músicos, sambistas, cabeleireiros, umbandistas, anjos, santos, Orixás, escritores, cantores e "gente que enquanto a Umbanda toca a gente monta", como meu Babá bem dizia, rasgaram o teto branco da enfermaria. E lá estavam, fisicamente contrariando a corte solitária da rainha Esquelética, o pai, seu Luiz, Vilma a primeira Yaô a ir, o Babá João Carlos, o irmãos de fé, as tias, os tios, os avós, as avós, alguns amigos de infância de Ramão, acompanhados por Dona Eloá de Xangô, Eni da Oxum e Santiago de Oxum, seus companheiros Babás e Yás que o ensinaram a amar e praticar a Religião Africana mesmo quando esta exigia dolorosos sacrifícios; Cartola, Lupiscínio Rodrigues e Pompilho, companheiros de escutar as cantigas em antigas noitadas pelos bares e bancas dos carnavais de Pelotas e Rio Grande; Mãe Neli, Mãe Idê, Danilo, Joana, Carlos Cleber, Geni, Jorge Luiz, e uma horda inumerável de ministros que com ele estiveram nos salões que são do povo como os céus são dos anjos, provando - em circunstância material - que a morte só é solitária quando reina sobre os injustos e os canalhas.
Numa fração de tempo incontável e irregistrável, num último lampejo de uma lucidez que conseguira esconder dos ladrões Diabetes, Coração, Potássio, Ramão sorriu para a Esquelética e lhe confidenciou no ouvido: "Me leva depressa porque tenho que aproveitar que vou para, comer horrores de doces, marcar axés e sambar e o principal de tudo... encontrar minha Rainha... que regeu a minha vida até hoje..."
Se colocaram um tapete vermelho ou dourado do Aiê até o Orum, isso eu não sei, mas que No caminho ele arrasou no samba... há isso ele fez... Afora que com certeza Mãe Oxum lhe recebeu em seu Palácio tapada em efun de ouro em pó, coberta de jóias em coral, rubis, marfim e gigantescos topázios... O banquete, nem vamos comentar... eram milhões e milhões de docinhos das mais variadas espécies, e imagino eu que a festa deve perdurar pela eternidade...
A Esquelética? Dizem os registros hagiográficos que naquele dia, contrariando a agenda superlotada, seguiu o cortejo de dragões alados e foi vista, acompanhada por ruidoso séquito,primeiro, num boteco do Balneário dos Prazeres, cantarolando as canções que Jamelão e outros puxadores de samba enredo entoavam, extasiada - talvez pela cerveja ou pelas palavras - com os argumentos e contra-argumentos travados entre os amigos que acompanhavam...
O resultado da recepção que aconteceu no Orum ainda permanece incógnita para nós, os vivos, mas rumores surgidos numa sessão espírita acontecida num subúrbio de Pelotas, dizem que a porta do Orum pegou fogo quando um certo ditador religioso, o grande canalha, trazido das vísceras profundas do Diabo, declarou nos portais, querendo adentrar, ter sido levado pela Esquelética "sozinho como um cão danado".
Peço desculpas a todos os meus irmão de axé que não me interpretem mal, mas tudo que escrevi no texto , não passou de uma última homenagem que fiz a uma pessoa que tanto representou não só na minha vida religiosa, mas também na minha vida pessoal, e de maneira alguma, tive a pretensão de ter conhecimento do que se passa depois da morte...